quarta-feira, 29 de outubro de 2008

A NOSSA IDENTIDADE - O TI-ZÉ-DA-AURORA

Há dias em que não conseguimos definir o que sentimos. Se fôssemos capazes de dar um nome a essas coisas não mergulharíamos em situações de vazio. Outras vezes é necessário andar muito tempo para trás até descobrirmos a essência da nossa identidade.
Naquele dia do aniversário dos meus sete anos, desaparecia o Ti-Zé-da­-Aurora, cuja auréola iria permanecer indelevelmente gravada, para sempre, no meu coração.
O meu avô era de estatura alta, franzino, sorriso escondido sob um bigodinho característico da família. Nele as rugas não assentaram arraiais, os cabelos nunca conheceram um tom esbranquiçado e os ossos nunca resmungaram. Nunca sentiu o peso dos anos, nem chegou a conhecer momentos de isolamento e de dependência, pois deixou-nos na aurora da vida.
De modo repentino, aquela força da juventude diluiu-se fisicamente no quotidiano das nossas vidas, deixando uma marca de dor e saudade. Não houve oportunidade para partilhar a sua sabedoria e a experiência acumulada.
Como te revejo pela entrega a certas causas com um brilho nos olhos e uma doçura na palavra!
Quantas histórias ficaram por contar! Quantos passeios ficaram por dar! Quando regressavas da Fábrica de Ruães e, depois de enganares o estômago, era ver-te com uma mão agarrada à enxada que levavas ao ombro, pelo Campo de Seixido abaixo, e a outra segurando ternamente o neto.
Aquela figura mágica, o avô mítico das histórias de encantar, não chegou a ser idoso. Não conheceu reforma, nem o estatuto penoso do reformado, não bateu cartas na banca improvisada do jardim, não chegou a envelhecer, nunca aprendeu a conjugar a expressão «ser velho», nunca deu mostras das «maleitas da idade», não contou com todo o tempo do mundo para conviver com os netos - alguns não chegou a conhecer - e com os amigos da «caça».
Não houve tempo para estabelecermos cumplicidades estimuladoras. Ficaram olhares, carinhos, sorrisos, recordações que enchem o tempo de saudade.
Em todas as crianças há um tempo, um espaço e um ser, mas tu desapareceste antes do meu tempo se cumprir e do meu ser se realizar. Se voltasses sorririas, por baixo do teu bigodinho, pois verias como cresci na tua ausência.
Será que quando nos entregamos à memória, aquele emaranhado de emoções a que não conseguimos dar nomes, será que estamos pura e simplesmente a analisar caminhos e influências?
Quando me entrego a certos pensamentos, recordo o teu olhar doce ao admirares os meus primeiros sarrabiscos e as minhas primeiras letras. Como sinto as tuas mãos calejadas do trabalho do campo e da labuta da fábrica ao afagares o rosto do neto mais velho. Como te enchia de vida e de entusiasmo o meu regresso às segundas-feiras. Os fins de semana eram uma eternidade.
Ai, se conseguisse agarrar as palavras que passam cá dentro! Se Ihes deito as mãos desabafarei que foste o melhor avô do mundo.