Artigo publicado no Correio do Minho de 11 de Outubro de 2011.
A devoção ao Martírio, Ressurreição e Glória de Jesus conheceu enormes desenvolvimentos após o Concilio de Trento, construindo-se muitas igrejas e templos dedicados ao Bom Jesus. Esta devoção remonta ao período medieval em que a arte religiosa era influenciada pela representação teatral, verdadeira paraliturgia popular, enfatizando o drama da paixão. Neste contexto e, no âmbito do redimensionamento das práticas religiosas, temos de considerar a forte tradição popular e as suas manifestações mais vulgares.
As lendas, a par das fábulas, contos, mitos, alegorias e provérbios, têm um valor histórico, menosprezado por muitos, mas fazem parte do nosso património e são uma riqueza cultural que urge preservar, pois fazem parte das nossas raízes. Revelam histórias fantásticas, originalmente contadas de forma oral, e que possuem origem histórica, interpretando factos, fenómenos e acontecimentos misteriosos ou sobrenaturais, que nasceram do imaginário do povo, por vezes com base em acontecimentos reais.
Pretendemos, aqui, com estas lendas, através das pistas que nos dão, revelar factos esquecidos e que no fundo têm sempre um fundo de verdade.
As lendas, agora reproduzidas, fornecem explicações plausíveis e aceitáveis e não são fruto da pura fantasia, constituindo um relato linear e com alguma coerência. A nossa cultura greco-romana assenta num tesouro indiscutível de mitos, lendas, fábulas, tragédias e comédias, que nos perseguem até hoje. Reunimos aqui algumas dessas histórias, que vão deixar seus ecos em todos os séculos.
Duas lendas, sobre o Bom Jesus do Monte, relativas ao aparecimento de uma Cruz e de um Cálice conduzem-nos a uma reflexão histórica, para além de outras a que não atribuímos verosimilhança alguma, como sejam as histórias à volta do Longuinhos e da água da gruta.
A primeira está relacionada com o aparecimento de uma Cruz, sob o céu do Monte de Espinho, após a Batalha do Salado, no século XIV. O prelado bracarense, de então, D. Gonçalo Pereira, atribui a vitória nesse combate à Santa Cruz, de quem era devoto, bem como seu filho, onde no seu estandarte figurava o respectivo símbolo da Cruz. Porque essa Cruz terá aparecido nos Céus do Monte de Espinho, nas fraldas da Serra do Carvalho, de imediato o arcebispo e os bracarenses acorreram ao local e levantaram uma Cruz e edificaram uma pequena Ermida. O Bom Jesus guarda no seu interior um dos maiores segredos que pela história perdura. Para lá das lendas, dos factos verídicos e de todo o potencial deste fenómeno natural, a devoção à Santa Cruz nasceu espontaneamente. Aí se iniciaram os primeiros passos, se plantaram ideias que brotaram viçosas, se ergueu uma cruz e assim começou uma caminhada devocional que hoje mantém a pujança de outrora.
A segunda sobre o aparecimento de um Cálice, na época da restauração da independência, no século XVII. Segundo a cultura popular teria aparecido um cálice rodeado por um esplendor sobre o Monte Espinho. De imediato, o povo acorreu com maior intensidade ao Bom Jesus em sinal de agradecimento. O jugo castelhano contribuiu para a união dos bracarenses debaixo da protecção do Bom Jesus do Monte, bem como para a sua projecção para fora da região. Muitos atribuíram o sucesso da Independência de Portugal, em 1640, e o fim do domínio filipino à intervenção divina. O Arcebispo de Braga D. Rodrigo da Cunha foi um dos principais opositores da incorporação de Portugal em Espanha, apoiando os revoltosos. Por este motivo, não são estranhas as lendas relacionadas com o Bom Jesus e a Independência de Portugal. Mais, duma análise iconográfica dos escadórios dos cinco sentidos e das virtudes sobressai um Cálice, símbolo eucarístico, imperceptível para a maioria dos peregrinos e frequentadores da estância, onde se vislumbra, com alguma benevolência, a base, o fuste e a copa.