Artigo do Doutor Aurélio de Oliveira, publicado no Diário do Minho de 7 de Outubro de 2011
A Confraria de Bom Jesus do Monte vai assinalar durante o mês de Outubro (dias 20 a 22) a data da conclusão arquitectónica do Templo com a realização de um evento de carácter científico, a saber: a realização de um Congresso sobre o Barroco, o primeiro especialmente consagrado às realizações do barroco em Portugal e no Brasil, reunindo estudiosos brasileiros e portugueses.
Na verdade, o actual Templo que remata o monumental escadório, com as Capelas e Passos da Paixão, ficou concluído em Setembro de 1811, substituindo um antigo Templo Barroco que vinha do tempo de D. Rodrigo de Moura Teles (1704-1728) e que ocupava o patamar inferior ao que ocupa o actual (onde se encontra hoje um fontenário artístico). Continuariam depois as obras com o preenchimento dos interiores (das talhas e pinturas), e depois continuando também vários arranjos nos jardins exteriores que se prolongariam por todo o Século XIX e que, praticamente, lhe deram a feição geral com que hoje o conhecemos.
Podemos dizer que o conjunto arquitectónico passou por 4 ou 5 momentos principais: uma primitiva capela ou ermida dedicada a Santa Cruz, que vem, sem dúvida, do Século XIV e que, com certeza, deve a sua fundação ao Arcebispo D. Gonçalo Pereira (1326-1348) sob invocação de Santa Cruz do Monte.
Este Arcebispo esteve na Batalha do Salado (1340) – uma das decisivas batalhas peninsulares – travadas contra a presença e domínio árabes na Península. O Arcebispo esteve aí, com Afonso IV, com as suas hostes e as de seu filho – D. Álvaro Gonçalves Pereira.
O Primaz atribuiu essa notável e decisiva vitória à intervenção de Santa Cruz de quem era devoto e que seu filho, Prior do Crato, levava arvorada em estandarte, conduzindo as hostes: Neste sinal da Vera Cruz… vencereis seus inimigos (Ruy de Pina, Chronica d´El-Rei Dom Affonso IV. Ed. Biblion Lisboa. 1936,168).
O resultado foi a erecção em Braga de uma ermida comemorando o feito e assinalando essa devoção. Curioso é notar que Afonso XI atribuiria a vitória, por sua vez, à Senhora de Guadalupe. Por idêntico motivo, fundou, nas imediações, um Santuário (sobre uma ermida anterior) que, pelo andar dos tempos, se transformaria num grande e aparatoso complexo e se volveria num importante centro de peregrinação em toda a Andaluzia e em toda a Espanha. Duas iniciativas devocionais que, no caso português, mais verosímil torna esta primitiva fundação de D. Gonçalo Pereira. A Ermida, desde aí, foi reunindo devoções e atraindo devotos, nesta primeira fase, essencialmente da Cidade de Braga. Pelos anos de 1373 se impunha a uma Irmandade sediada em Braga, (que também tinha essa devoção), que os seus irmãos « fossem de Braga à ermida de Santa Cruz pelo dia de S. João, do mês de Maio, de cada ano, pelo exaltamento da Santa Vera Cruz de Cristo”. Essa vetusta ermida seria substituída por uma outra de traça “moderna” – gótico final, ou manuelina ou renascentista – como era já a moda do tempo – atendendo, até, à importância e ao enorme património económico da personalidade a quem se atribuem essas obras (pelos anos de 1493-98) – D. Jorge da Costa. Mais que restauro, ter-se-á tratado de uma nova fundação em torno do mesmo devocionário – a Santa Cruz. Durante muito tempo, essa data seria tomada como a data da fundação do Bom Jesus do Monte. Por cerca de 1525, essa construção já oferecia ruína. O Deão D. João da Guarda, ao tempo em que D. Diogo de Sousa refundava e modernizava a cidade de Braga, com vários edifícios ao estilo Manuelino e da Renascença, reconstruiu ou, mais verosimilmente, edificou nova capela que alguns definem como “construção em grande”. Com peripécias várias, seria essa construção a que alimentou as devoções e os interesses de alguns particulares até 1629, altura em que se criou a Irmandade ou Confraria de Bom Jesus do Monte, que desde aí, também com peripécias e acidentes vários, tem regido, até à actualidade, os destinos devocionais e artísticos do Complexo do Bom Jesus do Monte. Surgia, a partir daqui,uma nova feição monumental a cujos traços gerais obedeceu a posterior intervenção de D. Rodrigo de Moura Teles, documentando, até ao tempo da intervenção deste Arcebispo, os primeiros passos do maneirismo e do barroco nortenhos. O complexo monumental, de feição barroca setecentista, com as capelas dos Passos da Paixão (que já existiam antes, mas foram refundadas ou construídas de novo, com o escadório monumental e suas fontes e um Templo (vulgarmente descrito como Capela) que rematava esse complexo e que ocupava, como dissemos, o imediato patamar abaixo do actual templo, são obra daquele grande Arcebispo – D. Rodrigo de Moura Teles (1704-1728) – a quem Braga, nesses aspectos, muito deve. Intervenções essas, que aqui se materializam a partir de 1722.
Os tempos posteriores são de prosperidade devocional e monumental. O Bom Jesus do Monte transforma-se no grande santuário de romagem não só de Entre-Douro-e-Minho como do conjunto do Reino. Aí acorrem devotos de todas as Províncias, desde o Minho à linha do Tejo. Melhor: “do reino todo”, com devoções que se estendiam ao Brasil e outras possessões ultramarinas (Fernando Castiço: 97; 111;115). E as famosas romarias são agora (não o foram antes?) um misto de devoção religiosa e de folguedo laico e profano a que os tempos da festa (como foram essencialmente os do Século XVIII), e a beleza do lugar tanto convidavam, paralelos a um profanismo e laicismo que foi acompanhando o bem-estar geral que se sentiu por quase todo este Século XVIII, (tenham dito ou continuem dizendo, outros, o contrário) e que tiveram nas grandes romarias e centros de romagem a expressão mais completa e, por vezes, mais heterodoxa em termos de devoto procedimento.
Paga a promessa – e no tempo mais breve possível, (várias Memorias dos Párocos – c. 1750-1758, vide Dicionário Geográfico do P. Luís Cardoso, desta altura, são liminares a este propósito), ficava, então, o resto e o grosso do tempo para o lazer e para diversão, que era essencialmente o que cada vez mais por esses centros se procurava. E poderíamos voltar, novamente, aos testemunhos de muitos párocos das Memórias Paroquiais. Entre outros, veja-se o testemunho do pároco de Tenões acerca do que, a meados do Século XVIII, já se passava com o Bom Jesus: “Agora, neste tempo do verão, quazi todo os dias vem furias de gente à ditta romagem (ao templo do Bom Jesus do Monte). E nesta sahida de Braga muitos gastam a sua sustancia: huns com a varriga outros por pecados offendendo a Deos e servindo-lhe o mesmo Senhor de escudo para o virem offender. Infim, hé hum sítio para onde corre tudo: o bô e o mao” (Em Memórias Paroquiais. Distrito de Braga. Ed. Viriato Capela. Braga, 2003, 207). Cumpria-se, desde há bastante tempo, o aviso de Aristóteles corroborado por S. Paulo (outro grego, aliás): o que mais rege o Homem é o animal e não o espiritual, isto é, mais o corpo que a alma! Pelo menos, um quinhão bem repartido! As acomodações tornaram-se exíguas e, por sua vez, a Capela ou Santuário que rematava o escadório começou a ameaçar ruína. Eram chegados os tempos das últimas grandes intervenções artísticase arquitectónicas que deram ao Santuário a feição que hoje conhecemos. Correu paralelas com outra época de esplendor arquitectónico que a cidade de Braga conheceu, com o último Arcebispo régio – D. Gaspar de Bragança (1758-1789). Coincidia também com o apogeu económico do próprio Santuário ou Confraria. Vários artistas de renome para este Santuário: engenheiros, arquitectos como carpinteiros e imaginários e pintores, como Mestres pedreiros de notável perícia, conhecimento, e qualidade que os equiparava a verdadeiros engenheiros e arquitectos diplomados, alguns dos quais tiveram, por anos, a responsabilidade directa de várias obras. (É por estes anos que se regista a presença de outro grande nome do barroco nortenho, André Soares, cuja presença aqui nos parece ter sido mais alargada e mais precoce do que o que se tem dito e afirmado. Logo veremos). Um período de prosperidade para o Santuário. Na verdade, visitando por estes tempos a cidade, o Marquês de Bombelles, desde 1786 embaixador da Corte de França, anota que bastariam as esmolas deste Santuário para se abrir a estrada de Lisboa ao Porto, (que se começava e logo se sufocava nos descaminhos e nas dificuldades financeiras).
Ameaçando ruína a “Capela” Setecentista do tempo de D. Rodrigo, exíguos os espaços de culto e acomodações, encomendou-se um novo Templo. Seria construído no patamar superior ao que ocupava o anterior, do tempo de Moura Teles. Foi seu autor o engenheiro Carlos Amarante, que já na cidade exercia importantes cargos em obras e por incumbência do Arcebispo e da edilidade e que na mesma deixaria outras obras notáveis (v. g. o actual Hospital de S. Marcos, como também na Cidade do Porto. Por simples curiosidade, aqui lateral, se diga que o primeiro projecto de uma ponte, de um só arco, para o Douro, a si se deve). Começaram as obras em 1784 tendo-se concluído em Setembro de 1811.
É este acontecimento que serve de pretexto para a realização do referido Congresso,
mas também de efeméride comemorativa dos 200 anos da conclusão arquitectónica do actual Templo. Embora vários exemplares da obra deste arquitecto estejam muito ligados ainda ao barroco terminal, podemos dizer que, com o Novo Templo do Bom Jesus do Monte, na traça arquitectónica, como na decoração dos interiores (que quase na totalidade se lhe devem, também, se remata em Braga, e em geral, o Ciclo do Barroco, abrindo-se decisivamente o caminho ao neo-clacissismo, estabelecendo, em simultâneo, um corte e um remate da formulária barroca que continuou (e continua) presente no Escadório, nas Fontes e nas Capelas dos Passos e outras que, entretanto, compuseram todo o conjunto.
Uma obra simbolicamente emblemática: um novo edifício de traça neo-clássica, rematando, coroando e, de certo modo, fechando, todo um conjunto barroco, rematando toda uma época. O Congresso que se irá realizar entre 20 e 22 de Outubro, focará e tratará vários aspectos da arte do barroco em que o Bom Jesus se insere, do primeiro ao último momento, como ainda outros aspectos importantes que têm a ver com o substrato económico que suportou e garantiu estas realizações artísticas, com a sociedade que as encomendou, as apreciou e delas usufruiu, como dos sentimentos e representações anímicas, culturais sentimentais e religiosas (da música à literatura) que enlaçam a produção Barroca e a Sociedade do Barroco.