sábado, 6 de outubro de 2007

«FREI CAETANO BRANDÃO - VIDA E OBRA»

Este grande vulto da velha metrópole bracarense nasceu na freguesia de Loureiro, perto de Estarreja, em 11 de Setembro de 1740 e faleceu no Paço Arquiepiscopal de Braga, nas vésperas do Natal de 1805, propriamente no dia 15 de Dezembro. Por inclinação genial e invencível para a vida eclesiástica, tomou o hábito da Ordem Terceira de S. Francisco, no Convento de S. Pedro da Ordem Terceira da Penitência, em Coimbra, apenas com 19 anos [1].
Na Lusa Atenas, onde se bacharelou em 29 de Setembro de 1768, estudou Cânones, Filosofia e Teologia [2].
A sua formação sofreu a influência da reforma pombalina dos estudos, implementada pelo franciscano Frei Manuel do Cenáculo e amigo pessoal do prelado bracarense.
Esta formação pombalina permitiu-lhe contactos com a filosofia moderna e com a teologia positiva.
Terminados os estudos universitários entrou, imediatamente, na carreira oratória, com a fácil e vigorosa eloquência que sempre conservou.
Caetano Brandão viveu em pleno século das luzes, do afã científico e filosófico, como referência suprema da vida humana. Mas as contradições, no século XVIII, subsistem, pois a cultura e o saber continuam a ser património dos privilegiados da vida e da fortuna. Os mais pobres não têm lugar no plano da sabedoria. Inclusivamente o critério da sociedade é que, tanto os pobres como os artesãos, não necessitam de aprender, basta-lhes trabalhar. O que interessa, para essa sociedade, é que sejam bons trabalhadores, para que não se corra o risco de abandonarem o seu Status.
Frei Caetano Brandão era, porventura, mais revolucionário, pois concebia que era necessário conciliar o trabalho e o ensino. Um bom trabalhador necessita de ter uma boa formação geral, profissional e moral. A própria evolução da sociedade, o progresso da pátria deveria assentar numa formação geral de todos os cidadãos, começando pelos mais necessitados porque os privilegiados da vida e da fortuna já possuíam os meios, os recursos, as escolas, os colégios de bem e podiam custear os mestres particulares, aios ou preceptores.
A sua preocupação pelo desenvolvimento económico, pelo desenvolvimento do ensino profissional e a criação de certames de carácter económico, procuram, fundamentalmente, criar condições ou pré-requisitos para fugir do ciclo da pobreza e do subdesenvolvimento das camadas populacionais. Medidas que, pela sua oportunidade, tiveram efeitos desmultiplicadores. Os concursos que promoveu são, no principal, um problema de educação, de orientação, de valorização que não podia deixar de atender ao desprimoroso atraso em que se encontrava a maioria da população.
Assim foi possível tirar das sarjetas muitas gerações de jovens e voltar a trazê-los para a luz dos salões, porque o destino não tem templos. O preclaro educador da ordem franciscana é uma figura emblemática da caridade, o rosto visível dos pobres: «Quizeramos em fim, opprimidos da caridade ir pessoalmente buscar os mais barbarosinhos dos nossos subditos mesmo dentro das suas rudes, e desabrigadas choupanas, abraçar-nos com elles estreitamente, mettellos em nosso coração» [3].
A obra deste proeminente arcebispo reparte-se por grandes áreas: do seu zelo episcopal à benemerência; da criação de escolas de primeiras letras à fundação de seminários para meninos órfãos e meninas órfãs; da instrução geral à formação profissional; da intervenção social à participação política; da pedagogia à filosofia; da interferência no desenvolvimento das artes e ofícios ao exemplo e pastoral evangélica.
Nas pastorais encontramos o fio condutor da sua teoria e militância, numa luta árdua pela criação de melhores condições de vida e que ele condensava na expressão: «a caridade como essência da perfeição». A caridade como uma das muitas estradas que o amor utiliza para fazer com que um homem se una ao seu próximo. Dar uma esmola a um pobre, por vezes, é fácil; amá-lo é fazer muito mais por ele. Neste sentido o amor é o melhor exercício da nossa fé.
Numa das suas pastorais, o «Discurso sobre o Estado Religioso» [4], aponta as fontes onde bebe o seu pensamento: S. Jerónimo, S. João Crisóstomo, S.to Agostinho, S. Frutuoso, Frei Bartolomeu dos Mártires, São Carlos Borromeu, S. Francisco de Assis, S. Bento, S. Isidoro e S. Francisco de Sales. Para ele, estes mestres e doutores da igreja são os oráculos que anunciam a verdade [5] . O prelado não deve ter alguma coisa própria [6], pois o pecúlio leva sempre conexo o vício abominável da propriedade. A ele pertence repartir a comida, o vestuário, a instrução, não igualmente, mas conforme as necessidades de cada um: «Ai dos Pastores, que se apascentão a si mesmos! Por ventura o rebanho não deve ser nutrido pelos pastores?» [7]. Ao pensar moralmente deve corresponder sempre o agir moralmente: «crer o que lê, ensinar o que crê e praticar o que ensina» [8].
Com o mesmo fim, o iluminado arcebispo, atribuía à educação um lugar primordial na formação do homem: «Façam o que fizerem, em quanto se não cuidar efectivamente na educação da plebe, assim politica como religiosa, verão sempre perpetuada a cadeia de desordens que desafiam a nossa magua; por que em fim é grande loucura esperar que venha a ser melhor a geração futura, se lhe não fornecermos outros recursos, que teve a nossa» [9].
O que mais fascina na personalidade deste arcebispo é essa sensação de desconformidade entre o ser e o dever ser, entre o que encontra e o que procura atingir. Mas para lançar a ponte entre o seu projecto e a realidade, estabelece os meios indispensáveis de regeneração e de solidariedade social, concretamente, o fomento da instrução e da educação.
A grandeza de alma de Frei Caetano Brandão manifesta-se no modo como se auto-analisa e como manifesta os seus escrúpulos acerca da maneira como exerce o seu cargo. Era um homem simples, humilde, solidário, de forte personalidade, mas de sólidas convicções no projecto que defendia, porque os seus valores e objectivos estavam na essência da evangelização religiosa.
A solidariedade concretizava-a diariamente junto dos seus compatriotas, bem como de dezenas de refugiados da revolução francesa. Como ilustração, recebeu em Janeiro de 1792, M. Pascal e sua mulher, insignes músicos de Harpa.
Frei Caetano Brandão é um homem de uma época remota, que atravessou a memória do tempo, sobretudo pela sua actuação inovadora, que pressentiu a mudança e reagiu a essa situação, em certos momentos aceitando, outras vezes invectivando contra os inconvenientes do meio. Teve sempre uma perspectiva optimista, apelava a uma sociedade mais aberta e integrada, ao aumento da tolerância e à diminuição da pobreza. Nunca se conformou com o «círculo vicioso» que gerava uma sociedade fechada, marcada pela intolerância rígida às novas correntes do pensamento, da qual resultava uma economia estagnada e um aumento da pobreza. Alheio a elitismos, a sua cultura era marcadamente antropológica. A cultura não era um conceito vago, consistia na faculdade de perceber aquilo que nos rodeia, para nos conhecermos e nos relacionarmos melhor.
Desprezando os critérios do mundo, o genuíno franciscano actuava, apenas, por motivações eclesiais, pastorais, zelo evangélico, devoção, apostolado e direcção espiritual.
Frei Caetano sempre manifestou o ardente desejo de ir para as missões do ultramar. Chegou mesmo, em 1778, a ir a Lisboa manifestar a sua pretensão, sabendo que a sua Ordem tencionava enviar missionários para Angola, mas tal manifestação de vontade seria indeferida em 1779.
No entanto, os desígnios seriam outros. A nomeação, em 2 de Agosto de 1782, causou-lhe enorme surpresa. A humildade do seu ânimo e a modéstia do carácter não lhe permitiam elevada dignidade. Apesar disso, a pedagogia missionária impedia-o de uma recusa formal. Desta forma, Frei Caetano Brandão navegou em águas aventurosas, acreditou no futuro e embarcou em naus que venceram, apesar dos ventos contrários. Belém do Pará é o porto de arrimo.
A partir de 1722, o Brasil, politicamente, passou a constituir um único vice-reinado com sede no Rio de Janeiro, mas dividido em nove capitanias gerais e nove capitanias subalternas: Grão-Pará (com S. José do Rio Negro, conhecido por Amazonas); Maranhão (com Piauí); Pernambuco (com Ceará, Rio Grande do Norte e Paraíba); Baía (com Sergipe e Espírito Santo); Rio de Janeiro (com Santa Catarina e Rio Grande de S. Pedro, conhecido por Rio Grande do Sul); S. Paulo; Minas Gerais; Goiás e Mato Grosso.
A divisão eclesiástica era diferente. Por volta de 1670, apenas a Baía tinha o seu Bispo, cujo poder abrangia todo o Brasil. Em 1676, surgiram três novas dioceses: Rio de Janeiro, Olinda e Maranhão, ascendendo a Arcebispo o Bispo da Baía. No século XVIII, aumenta o número de dioceses: Pará (1719), Mariana (1745), S. Paulo e Goiás (em 1745, mas com efectivação em 1782). O Maranhão e o Pará dependiam de Lisboa. Em resumo, nos finais do século XVIII, existia no Brasil um Arcebispo, o da Baía, cuja autoridade abrangia as capitanias de Sergipe, Baía e com supremacia sobre todo o Brasil; o Bispo do Pará, com autoridade sobre S. José do Rio Negro e Grão Pará; o Bispo de Maranhão, com poder sobre Piauí, Ceará e Rio Grande do Norte; o Bispo de Olinda, com autoridade sobre Paraíba e Pernambuco; o Bispo do Rio de Janeiro, com autoridade sobre Espírito Santo; o Bispo de S. Paulo, com poder sobre Santa Catarina e Rio Grande de S. Pedro; o Bispo de Mariana, com jurisdição sobre Minas Gerais; o Bispo de Goiás e o Bispo de Cuiabá, com jurisdição sobre Mato Grosso.
No Pará, o quadro social e principalmente o rácico mostrava umas quantas particularidades. A maioria era aí constituída por índios cristianizados e por mamelucos ou caboclos (mestiços de branco e índio).
Em 1992, apareceu uma publicação do Senhor Doutor Luís A. de Oliveira Ramos, intitulada Diários das Visitas Pastorais no Pará de D. Frei Caetano Brandão, edição do Instituto Nacional de Investigação Científica.
Esta publicação reproduz os diários das quatro visitas pastorais realizadas pelo prelado em Belém do Pará, entre 2 de Julho de 1785 e 8 de Março de 1789. A leitura destas páginas é um vibrante fascínio. O Bispo do Pará regista as suas impressões durante a permanência na colónia nos finais do século XVIII, no termo dos últimos fulgores do ouro que alimentou uma centúria e que já não era senão uma ténue sombra.
O prelado concebe o mundo como um texto legível. É um texto místico de uma transcendente espiritualidade. Procura nos seres algo de diferente que aprofunde a sua significação.
Esta visão do mundo é dominada pelo princípio de que Deus está em tudo, cabendo ao leitor decifrar a linguagem que o configura: tudo o que é visível relaciona-se com o invisível, o audível com o inaudível, o sensível com o insensível e talvez o pensável com o impensável.
Num desafio à fadiga, às pragas, às intempéries, às doenças e epidemias, às agruras típicas, andou milhares de quilómetros na bacia e território do Amazonas, repartidos por quatro visitas pastorais e iluminados pelo dever pastoral. Aquela figura ascética, robusta, com um perfil bem definido, deixava transparecer a santa intrepidez com que desafiava os perigos em nome da glória divina. Durante essas viagens, teve tempo de registar as suas impressões, contra as omnímodas vicissitudes da navegação fluvial, contra a fúria dos elementos naturais e contra o incómodo das pragas e os ardores do clima. Que belas páginas literárias, por vezes suscitadas pela expressividade simbólica e mítica de ver a mão do criador em tudo. Outras informações são possíveis: sobre demografia, pastoral evangélica, economia, sociedade; pormenores sobre doenças e pragas, sobre a fauna e a flora; elementos de hidrografia, orografia; os insólitos da natureza, as tribos indígenas, as etnias, os usos e costumes e a geografia das produções.
Seria fastidiosa a transcrição de textos exemplificativos sobre todos estes parâmetros. Limitemo-nos a dois saborosos extractos. O primeiro relata alguns usos e costumes: «Trouxerão-me os índios certos talos de palmitos de huma arvore chamada assaim, assazmente tenros, e mimosos, de que mandei fazer hum esperregado para a cêa, a cousa mais excellente, que tenho provado deste genero» [10]. O segundo narra alguns insólitos da natureza [11]: «Entrámos no rio Cajarí, que he bastantemente comprido, e, como todos os mais, acompanhado de huma e outra margem de frescos arvoredos, que deleitão a vista: confesso que muitas vezes, alargando os olhos por aquellas situações tão apraziveis, bem desejei a pureza, e innocencia das almas justas, para poder à sua imitação subir por estes degrãos ás maiores alturas do ceo, e contemplar a amenidade daquelles jardins, formados pela mão do creador para eterno recreio dos escolhidos».
Nos Diários, as árvores estão presentes como símbolos de vida e de aproximação aos céus. Pelos Diários se constata que o Bispo do Pará teve oportunidade de verificar as nefastas consequências da expulsão dos jesuítas das terras brasileiras. Depois de observar as péssimas condições em que viviam as povoações de Penha Longa e Porto Salvo, o bispo comenta que estas preferem antes a liberdade do que a abundância que podem ter ao serviço dos brancos. As actividades mais pesadas eram entregues aos índios e escravos, porém, o exercício das pequenas actividades mercantis, sobretudo de vendedores ambulantes, descreve Caetano Brandão, estavam destinadas à emigração popular portuguesa. Esta comunidade, uma vez estabelecida, entregava-se, muitas vezes, aos vícios, particularmente, a incontinência. A leitura deste livro conduz-nos facilmente às palavras do Génesis, cap. 2, 8-15: «Iahweh Deus plantou um jardim no Éden, no Oriente, e aí colocou o homem que modelara. Iahweh Deus fez crescer do solo toda a espécie de árvores formosas de ver e boas de comer (...). Um rio saía do Éden para regar o jardim e de lá se dividia formando quatro braços. (...) Iahweh Deus tomou o homem e colocou-o no jardim do Éden para o cultivar e guardar».
Foi o Brasil que, durante o século XVIII, trouxe a Portugal uma época de prosperidade, de desenvolvimento e de respeitabilidade no concerto das nações. No Brasil, Caetano Brandão foi pastor, encontrou terreno adequado à sua missão, descobriu formas de fazer bem ao próximo, lançou as linhas mestras da sua acção futura. Não era o bispo ostentoso fazendo acatar as galas da sua corte prelatícia. Começou pela reforma do seminário, que funcionava no paço episcopal, aumentou o número de vocações, redigiu os estatutos, aumentou o número de cadeiras e tratou de fiscalizar o ensino. Ia às aulas e saía em passeio com os educandos. Obteve do Ministro do Ultramar, Martinho de Mello e Castro, o espólio do seu antecessor, D. João Evangelista Pereira, para aplicação em benfeitorias no seminário. Fundou escolas de primeiras letras, instituiu uma confraria da caridade, fundou um Hospital e incrementou visitas pastorais.Lá encontrámos as primeiras sementes no campo da educação feminina. Uma pessoa (homem ou mulher), bem formada e informada, tem mais possibilidade de analisar a realidade com um olhar crítico mais humanizado, sendo um cidadão mais útil e mais interveniente. Por este princípio haveria que desenvolver e fomentar a educação e a instrução, sem olvidar as mulheres, sector prioritário do seu múnus.
Caetano Brandão foi daqueles que promoveu o diálogo intercultural, tendo em conta a mestiçagem étnica, a simbiose de valores morais, políticos e estéticos, o intercâmbio de saberes científicos. A evangelização transoceânica e transcontinental de Caetano Brandão tinha sempre em conta as culturas residentes e autóctones, num processo de aculturação permanente. A defesa dos direitos das comunidades nativas permite-lhe levar a cabo uma evangelização em que são respeitadas as diferentes formas de civilização. Os missionários portugueses foram dinâmicos agentes da difusão do cristianismo e da cultura europeia: Jesuítas, Franciscanos e Dominicanos levaram aos continentes africano, americano e asiático uma mensagem ecuménica, universalista, privilegiando as populações nativas, a liberdade racial, os modos de viver, pensar e sentir das populações.
O nome deste ínclito prelado está para sempre ligado à urbe bracarense, não apenas por seu nome estar patente numa rua [12], aberta em 1878, mas também por figurar entre os maiores, nas resenhas históricas da cidade dos arcebispos.
O sucesso da sua missão no Pará teve eco na corte. Não tardou que sua Ex.ª Rev.ma fosse transferido. Esta ordem foi encarada pelo franciscano, de modo resignado e realista: «se exceptuarmos o patriarchado, todos os outros bispados do reino juntos não pezão tanto como o bracarense» [13].
A nomeação, em 28 de Abril de 1789, pela Rainha D. Maria I para ocupar a cátedra bracarense, que vagara em 18 de Janeiro de 1789, deveu-se, essencialmente, à obra imorredoura que o prelado realizou durante o seu episcopado de oito anos no Brasil. Esta notícia chegou à Roma Portuguesa alguns dias depois, a 3 de Maio. A carta de 12 de Junho de 1789, da secretaria do Paço de D. Maria I, ao arcebispo eleito D. Frei Caetano Brandão, é explícita: Ex.mo e Rev.mo Snr. Sua Magestade manda remeter a S. Ex.Rev.ª as Letras Apostolicas incluzas da Confirmação que o Santo Padre Pio VI, ora Prezidente na Universal Igreja de Deos, fez da Nomeação e Apresentação da mesma Senhora para o provimento do Arcebispado de Braga, na digna Pessoa de S. Ex.ª transferindo-o da Santa Igreja do Pará, em que se achava provido e confirmado.
Ao mesmo tempo manda remeter a S. Ex.ª o Pallio, e as Breves de Indulgencias, Concessoens, e Faculdades espirituaes, que são do costume, e com elles a Bulla da Formula de Juramento, que S. Ex.ª ha-de prestar (...) [14]. Tendo saído de Belém do Pará a 9 de Setembro, chega à Casa Mãe da Ordem em Lisboa, em 20 de Outubro de 1789, logo mostrando interesse em trabalhar pela sua arquidiocese. Em 8 de Novembro de 1789, o cabido recebe uma carta do prelado e a 22 de Novembro de 1789 escreve ao Tribunal da Relação nestes termos: «Bem sabe Elle quanto he a minha insuficiencia para suster o pezo e manejar as rodas de hua maquina tão complicada e que incomparavelmente mais que o condutor do povo hebreu, eu tinha necessidade de hum congresso de homens sizudos e illustrados que unidos comigo em hum mesmo espirito contribuissem a facilitar-me o desempenho deste critico ministerio. Não duvidem Vossas merces que se a gloria de Braga dependesse somente de meus desejos e das minhas intençoens, nada seria mais bem fundado que a lisonjeira esperança que todos se prometem na presente translação, mas em fim são desejos descarnados de eficacia e por isso talves athe agora infrutiferos» [15].
Registe-se, igualmente, a Bula Romani Pontificis, de Pio VI a D. Frei Caetano Brandão, datada de 29 de Março de 1790, pela qual o transfere do bispado do Pará para o arcebispado de Braga [16]:
«In nomine Domini, Amen (...) Venerabili Fratri Cajetano Brandao Episcopo nuper Belemen de Pará in Archiepiscopum Bracharen electo salutem et aplicam beneditionem Romani Pontificis».
Com esta bula vieram mais oito, uma delas dirigida à Rainha.
Nos princípios de Junho de 1790, chegavam-lhe as Bulas de Confirmação e com elas o Pálio, que recebeu da mão do bispo e seu confessor D. José Maria de Melo.
Entrou em Braga, no dia 17 de Setembro de 1790, sexta-feira, entre as três e as quatro horas da tarde. Frei Caetano Brandão entrou pela Cruz de Pedra, acompanhado pela Nobreza, Meirinhos, Oficiais de Justiça, o Deão, Cónegos, familiares e seguiram até à Capela de S. Miguel-o-Anjo [17], onde o Cabido o esperava. Depois de paramentado de pontifical, incorporaram-se no cortejo o Cabido, Clero, Comunidades, Irmandades e Confrarias e seguiram até à Porta Nova, ricamente ornada pela Câmara, bem como todas as ruas e janelas da cidade. Da parte de dentro da muralha, em frente à fonte, a Câmara levantou um palco, onde se encontrava toda a vereação da Câmara, o Juiz de Fora, Ouvidores, Juizes de Órfãos, o Escrivão da Câmara. Ali lhe foram entregues as chaves da cidade. Em seguida, debaixo do pálio, todos, em procissão, dirigiram-se para a Sé [18]. Por fim, viria a recolher ao Paço dos Arcebispos, situado no Campo de Touros que, de entre as praças da velha urbe, era um lugar aprazível no coração da cidade, pela sua situação privilegiada: «O Campo dos Touros he huma praça em quadro, bem capaz e igual que fica para a banda dos paços do senhor Arcebispo (...) durante o tempo das festas esteve cercado de muitos palanques repartidos por ordem, para o Reverendo Cabido, dezembargo, Camara, por cuja conta se levantarão muitos mais para os hóspedes de fora, em que entrava gente da nobreza e ao pé da janela do Arcebispo estava outro particular para os parentes que o tinhão acompanhado» [19].
O arcebispo assistia da sua janela às cavalhadas, escaramuças, jogos de canas e torneios que o senado tinha organizado em sua honra, como era usual na entrada solene dos arcebispos, ou celebrações em honra da família real, não faltando os arcos triunfais, os castelos de fogo de artifício, os jogos de alcâncias com cavaleiros da cidade e da província.
Não obstante determinações suas em contrário, a cidade acolheu-o festivamente e passou a contar, não só com o pastor liberal e pobre no meio da grei empobrecida, mas também o grande mestre da solidariedade cristã, vulgarmente conhecida pelo nome sublime de amor. Dispensou as mordomias e criadagens, os carros puxados a urcos e as faustosas solenidades que se tornaram timbre da mitra.
Com Caetano Brandão renasceram as sempiternas quezílias com a mitra e o corpo capitular, pois estes não perdoam a perda dos seus príncipes, a falta do perfume da corte e a extinção do senhorio. A 19 de Julho de 1790, antes da saída de Lisboa, foi passada a Carta de Lei, segundo a qual no seu art. 30, se extinguiu a Relação que tinham os arcebispos, na qual se decidiam as causas não só eclesiásticas, mas cíveis e crimes, acabando, desde então, uma das principais prerrogativas do senhorio temporal do arcebispado bracarense. Mesmo assim, apesar da cessação senhorial, nunca se eximiu aos seus poderes, assumindo-se como um disciplinador. Veja-se a Provizam porque V. Ex.a ha por bem reduzir o off. de Depozitario g.al, a hua Administr.am de tres Deputados debâxo do Regulam.to, q. na m.ma se prescreve em conformid. das Leis do Reyno, na parte que he applicavel.
A mitra não se resignava com a perda do poder temporal dos prelados, nem com a pobreza evangélica e o afã catequético imprimidos pelo arcebispo: «este prelado veio despertar Braga do letargo em que jazia (...) (pois) não sabia muito que cousa era um pastor verdadeiramente bispo. Conhecia príncipes na verdade magníficos e benignos que queriam o bem, mas não se resolviam a segui-lo» [20].
Como exemplos destes confrontos, citemos os casos com o Deão Vilhena e o Deão Luís Furtado de Mendonça. Também alguns cidadãos manifestaram a sua animosidade. O Dr. Joaquim José dos Santos Pinheiro, Jurisconsulto e Deputado às cortes de 1820, morador na Rua Nova de Sousa, onde se encontra presentemente a Farmácia Rodrigues, pai da Senhora Ana Brandão Pereira, foi um dos que mais se opôs, responsabilizando o arcebispo pela renúncia que fizera do seu senhorio e poder temporal.
As suas ideias provocaram a ironia, o humor negro e foram recebidas friamente no meio bracarense. Sobre esta situação, o prelado prefere ver de cima e para cima, não se preocupando com o acessório, mas com os detalhes mais significativos. O seu posicionamento é de humildade, que raras vezes confunde com modéstia. A simplicidade deu-lhe a exacta dimensão dos seus projectos, das suas acções e das obrigações para com os homens e para com Deus.As recordações e as saudades desta cidade nunca foram grandes. Preferia a cela monacal ao Paço de Braga [21]. Por isso desfiou, muitas vezes, o rosário do seu inferno privado, não obstante a sua acção como reformador social ecoar junto às portas do paraíso.
Com certeza que tinha fragilidades e qualidades; mas terá sido mais odiado pelas suas qualidades - que sobressaem face à mediocridade - do que pelos defeitos. Por outro lado, foi um homem que defendeu e lutou por aquilo em que acreditava. Não procurava soluções pontuais, lutava por medidas e projectos com futuro.
Grandes prelados (no caso de Braga: D. Frei Diogo da Silva, D. Frei Aleixo de Meneses, D. João Crisóstomo de Amorim Pessoa, D. Frei Miguel da Madre de Deus e D. Frei Caetano Brandão) serviram-se do missionarismo como campo de ensaio pastoral.
Caetano Brandão teria um conceito regalista, ou um conceito baseado na escritura e na patrística de pastoral? - questão levantada pelo franciscano António de Sousa Araújo, grande conhecedor da obra do prelado bracarense [22].
Para este, a pastoral passava pelo esclarecimento, pelo incutir confiança e, sobretudo, por sentir a mensagem cristã no meio dos paradoxos do filosofismo. Deste modo, os pastores, sempre acompanhados pelo exemplo e pelo testemunho, deveriam instruir, esclarecer, tendo em conta a doutrina sã e ortodoxa, a doutrina da escritura e da patrística: «Mandou por hum edital para que todos os Parochos estivessem prontos para serem examinados (...) porem não esteve muitos dias por que logo apareceu rasgado e teve por isso muitas contradisois por os concílios determinarem o contrario» [23].
A sua preocupação era dotar as paróquias de sacerdotes dignos, ilustrados, cooperadores, obreiros, medianeiros, embaixadores, deuses da terra, presbíteros do povo, exemplos vivos. Refere o franciscano António de Sousa Araújo: dá a impressão que estamos a ler passagens dos documentos do Concílio Vaticano II.
A pastoral caetaniana era abertamente intervencionista, no domínio social, aquela que reclamava a época das luzes. Justifica-se, portanto, a sua intenção de formar ministros sábios e ilustrados, detentores não de uma ciência vazia, que inspirem o combate à inércia, ao obscurantismo e à inutilidade. Tarefa bem difícil. O prelado deixava transpirar no seu múnus pastoral em Braga, algumas dificuldades: «Eu que me queixava do Pará, mas em comparação de Braga fica a perder de vista, é a cabeça a andar sempre em urgir de negócios, vendo como há-de dar providência a todos, porque todos a reclamam à porfia».
A cidade (Braga), sempre de ferro em brasa, era uma máquina complicadíssima, que nem andava, nem deixava andar, como rodas sempre a desconjuntar-se. Vai compor-se uma roda, desanda outra: é estar sempre em contínua fadiga e sobretudo como quem tem o garrote na garganta.
Nas classes privadas de bens materiais e na mendicidade, encontrava o seu campo de acção. Lutava pela dignificação do ser humano, sem procurar estigmatizá-lo.
Caetano Brandão era um oceano de bondade, um fluxo e refluxo de grandes marés em direcção do outro, do outro eu, um eu sem recursos, a que urgia recorrer e ensinar a pescar. Não tem mãos a medir para que o esforço resulte em grandes obras de instrução e caridade, o serviço se faça e a realidade não desmereça o sonho. Travou consigo exigentes testes, para materializar os seus sonhos, alguns deles imponentes marcos de lusitanidade aquém e além mar.
No livro Diários das Visitas Pastorais no Pará de D. Fr. Caetano Brandão, o Doutor Oliveira Ramos escreve: «Uma vez instalado em Braga (1790), varreu o fausto pação e a familiarquia (o vocábulo é do tempo) que cercava D. Gaspar, visitou, sem olhar a gradações hierárquicas, altos clérigos e obscuros seminaristas, nobres e doentes. Trouxe para junto de si os deserdados e as crianças carecidas de educação. Continuou a trajar como frade, deu-se intensamente à caridade. Quando das suas frequentes visitas à diocese, hospedou-se em conventos e paróquias, viveu com religiosos e abades rurais, quis pagar as suas despesas e as do seu séquito» [24].
As gentes do Norte, debaixo da sua protecção paternal, prezaram as suas visitas, a sua acção evangelizadora, o grande orador sagrado, as suas virtudes, o seu trato, as suas iniciativas. Na província (onde foi por treze vezes, num espaço de 15 anos, num desafio constante à fadiga), pregava, confessava, crismava, abeirava-se das pessoas e procurava informar-se da vitalidade religiosa, social e económica das povoações.
Após o seu desaparecimento físico, o cabido bracarense ficou com alguns assuntos pendentes que revelavam determinadas orientações do prelado. Para solucionar estas questões dirigiu-se, em ofício datado de 26 de Dezembro de 1805, a S.M. colocando aquelas dúvidas e outras sobre o futuro da instituição: a Mitra deveria continuar a custear as despesas de 4 alunos que saíram do colégio para frequentar a Universidade; a Mitra deveria pagar a três mestres de Teologia Moral e Retórica, à razão de 100$000 rs cada um, para terem no Seminário de S. Pedro as respectivas matérias; a Mitra deveria continuar a distribuir os subsídios instituídos por D. Frei Caetano Brandão, nomeadamente um de 25$600 rs ao Hospital; e que fazer ao presbítero francês, tão pobre e desgraçado da sua sorte, mas de exemplar comportamento. Em nosso entender, estas diligências perfeitamente desnecessárias, estavam contempladas no Testamento [25]de D. Frei Caetano Brandão de 26 de Julho de 1795.
No Livro de Óbitos da freguesia de S.ta Maria Maior da Sé Primaz, desta cidade, com princípio em 1784 e término em 1813, a fl. 160V e seguintes, encontrámos o assento de óbito, documento valioso que relata os seus últimos dias, sufrágios, funeral e exéquias.[1]
Não temos a pretensão de elaborar uma biografia do prelado. Esta pode ser consultada na nossa obra Pensamento Social e Pedagógico de D. Frei Caetano Brandão. Também a bibliografia, inserida no final desta publicação, procura completar a existente no livro atrás citado.
Após a conclusão desta investigação tomámos conhecimento, com regozijo, de duas notícias. A primeira foi a publicação do livro D. Frei Caetano Brandão: O reformador contestado, de José Paulo Abreu, Braga, 1997. Na pág. 97 do referido livro, deve alterar-se a data do 2.º casamento da mãe do arcebispo. A certidão de casamento é explícita: 18/10/1743. A segunda tem a ver com o Desp. n.º 9529/97, 2.ª série, publicado no D.R. n.º 244 de 21/10/1997. Nele pode ler-se: «A Escola dos 2.º e 3.º Ciclos do Ensino Básico de Maximinos, Braga, passa a denominar-se Escola Básica dos 2.º e 3.º Ciclos Frei Caetano Brandão, Braga».
[2] Com o nome de Caetano José Brandão, através do Arquivo Geral da Universidade de Coimbra, vêmo-lo matriculado em Instituta a 1/10/1756 (Liv. 74, fol. 321 V.) e em Cânones a 1/10/1757 (Liv. 75, fol. 78 V.) e 1/10/1758 (Liv. 76, fol. 73 V.). Sob o nome de Caetano da Anunciação, que usou em religião, vêmo-lo matriculado em Teologia a 1/10/1763 (Liv. 81, fol. 8); 1/10/1764 (Liv. 82, fol. 8); 1/10/1765 (Liv. 83, fol. 8); 1/10/1766 (Liv. 84, fol. 7); 1/10/1767 (Liv. 85, fol. 4); 1/10/1768 (Liv. 86, fol. 5). Sobre exames fez a 1.ª Tentativa a 19/1/1768 (Liv. 102, fol. 11V.); a 2.ª Tentativa a 17/3/1768 (Liv. 102, fol. 12); o 2.º Princípio a 6/6/1768 (Liv. 102, fol. 28) e a Formatura em 29/11/1768 (Liv. 103, fol. 9); cf. Luís A. Oliveira Ramos, Diários das Visitas Pastorais no Pará de D. Fr. Caetano Brandão, Lisboa, Imprensa Nacional, 1991, p. 8.
[3] «Pastoral primeira, com que sua excellencia sauda os seus subditos do Pará», in Pastoraes e outras obras do veneravel D. Frei Caetano Brandão, Lisboa, Impressao Regia, 1824, p. 107.
[4] in Pastoraes e outras obras do veneravel D. Frei Caetano Brandão, Lisboa, impressao Regia, 1824.
[5] Ibidem, p. 48.
[6] Ibidem, p. 34.
[7] Ibidem, pp. 104-105.
[8] Ibidem, p. 117.
[9] A. Caetano do Amaral, Memórias, tomo II, 2.ª ed., p. 90.
[10] P.38.
[11] P.47.
[12] Manuel António Braga da Cruz, Braga no ano de 1882, Braga, 1980, Separata da Revista Braccara Augusta, vol. XXXIV, fasc. 78 (91), Julho e Dezembro de 1980.
[13] Memórias, vol. II, 2.ª ed., 1867, p. 93.
[14] Col. Cronológica, doc. 3256, ADB-UM.
[15] Inácio J. Peixoto, Memórias, Manuscrito do ADB-UM.
[16] Caixa das Bulas, doc. 387, ADB-UM.
[17] Nesta capela os arcebispos bracarenses revestiam-se de vestes sagradas e daqui partiam para a Sé, aquando da sua entronização na arquidiocese. De arquitectura simples, está situada na Rua Cardoso Avelino, na freguesia de Maximinos, onde foi reedificada após a vereação de 1841 ter ordenado a sua demolição. Achava-se outrora junto da Porta de Maximinos, fronteira à Sé, no preciso local em que tinha sido fundada no ano de 1591. Em 1743, instalaram-se nesta capela as confrarias de S. Lourenço e de Nossa Senhora da Purificação; em 1744, a confraria de Nossa Senhora do Ó; em 1751, a de Nossa Senhora das Graças; em 1765, a de Nossa Senhora do Amor; em 1772, a de S. José no Presépio; em 1781, a de Nossa Senhora da Paz; em 1785, a das Almas e de S. Nicolau. Em 1900, esta capela foi demolida e transferida para o seu actual local, para dar lugar à Avenida S. Miguel-o-Anjo, que fica entre o Campo das Hortas e as Carvalheiras.
[18] Livro Curioso, que contem as principais novidades sucedidas do dizcurso de 35 annos principiando pelo de 1755 até 1790, tomo I, fls. 678 a 680, ms 341, ADB-UM.
[19] Relação do Recebimento e Festas que se fizerão na Augusta Cidade de Braga a entrada do ilustrissimo e Reverendissimo Senhor Dom Rodrigo da Cunha, Arcebispo e Senhor Primas das Hespanhas, Impresso em Braga por Fructuoso Lourenço de Basto, 1627, BNL.
[20] Inácio J. Peixoto, Memórias, Manuscrito do ADB, cf. Memórias particulares de Inácio José Peixoto, Coord. de Viriato José Capela, Braga, ADB, 1992, p.115.
[21] Memórias, vol. II, 2.ª ed., 1867, p. 297.
[22] Itinerarium, n.º 143-144, 1992, pp. 309-335.
[23] Livro Curioso, que contem as principais novidades sucedidas do dizcurso de 35 annos principiando pelo de 1755 até 1790, tomo I, fl. 698, ms 341, ADB-UM.
[24] p. 10.
[25] Publicado na íntegra em O Constituinte de 20/12/1882.