Contra a corrente preponderante, vários pedagogos reconheceram a urgência em determinar um novo sentido para a legitimidade da educação feminina e remar contra a maré. Nesta corrente citamos: os humanistas Erasmo e L. Vives, que reagiram contra antigos preconceitos Judaico-Cristãos sobre a inferioridade e malícia das mulheres; Coménio, na Didáctica Magna, (1657); Fénelon, no Traité de l’Éducation des Filles, (1687); Mary Wollstonecraft, [1] que ousou sistematizar e dar forma concreta a protestos que se encontravam no espírito das suas contemporâneas, no livro Reflexões Sobre a Educação das Nossas Filhas e Reivindicação dos Direitos da Mulher; e Rollin, que é particularmente notável por referir as vantagens de se instruírem as mulheres, na obra De la Manière d’Enseigner et d’Etudier les Belles Lettres par Rapport à l’Esprit et au Coeur, (1726-1728).
Entre portas, duas datas e duas publicações constituem factos significativos da história das mulheres em Portugal, até à época em que movemos o nosso estudo. Primeiro, a publicação do Espelho de Cristina, em 1518, tradução e adaptação do Livre des Trois Vertues, de Christine de Pisan. É um dos primeiros livros impressos em Portugal, por ordem de D. Leonor. Segundo, a publicação Dos privilégios e prerrogativas que o género feminino tem por direito comum e ordenações do reino mais do que o género masculino, em 1557, de Rui Gonçalves. Podemos afirmar que esta obra é considerada o primeiro livro «feminista» português, no sentido de nele se assumir a defesa dos direitos das mulheres.
Às concepções do franciscano Caetano Brandão não são estranhas as influências da época, nomeadamente o papel das mulheres na Revolução Francesa. Desta influência não resistimos a mencionar o quadro de Delacroix, existente no Louvre, onde o triunfo da República é personificado por uma mulher e uma criança; os apelos das mulheres, que podemos encontrar nos Cahiers de Doléances, que querem fazer-se ouvir, pretendem a sua admissão nos Estados Gerais e exigem o direito ao trabalho e à educação; o papel das mulheres no Verão de 89, ou mais propriamente o papel das mulheres voluntaristas na Tomada da Bastilha e que, posteriormente, tanto Baudelaire como Lamartine cantarão; e, em síntese, por que não citar algumas: Sophie de Condorcet, a mulher de espírito; Madame de Stael, a amorosa da revolução; Elta Palm, a mulher pragmática; Olympe de Gouges, a mulher política e Manon Roland, a mulher racional.
Não olvidemos que a revolução de 89 proclamava a igualdade dos sexos perante a lei.
Este prelado estava a par dos principais desenvolvimentos e contornos da revolução, pois, para além de possuir no paço a Encyclopédie, assinava o Correio da Europa e usufruía do contacto com os clérigos expatriados de França. Por exemplo, o Padre, Poeta e Arquitecto Pierre Noury, fundou no coração da Bretanha, diocese de Vannes, um colégio feminino de beneficência «Filles de Jésus de Kermaria», e já entre nós foi professor no Seminário de Braga, onde teve a oportunidade de conviver e influenciar o arcebispo, entre 1794 e 1801 [2].
Entre nós, lutaram pela dignificação da condição feminina três grandes homens da cultura: Luís A. Verney, Ribeiro Sanches e Cavaleiro de Oliveira (ou D. Francisco Xavier de Oliveira, 1702-1783, o nosso protestante que as chamas inquisitoriais só não reduziram a cinzas porque tivera a dita de verter para o papel as suas lucubrações longe da pátria). Este dedicou algumas passagens do Amusement Périodique (1751) à educação e instrução das mulheres. Ribeiro Sanches, em 1759, publica As Cartas Sobre a Educação da Mocidade, onde faz uma alusão à necessidade de instruir as «Senhoras» portuguesas. Cabe lembrar que só as «Senhoras» eram contempladas: as mulheres do povo permaneceriam ainda na escuridão e submissão.
No plano da educação de Ribeiro Sanches, os trabalhadores, ou (como ele escreve nas Cartas sobre a Educação da Mocidade) o Pastor, o Jornaleiro, o Tambor, o Carteiro, o Criado, o Escravo e o Pescador, bem como as suas esposas e filhos, estavam condenados ao obscurantismo [3].
Também Sebastião José de Carvalho e Melo, criador do Ensino Primário Oficial, por alvará de 6 de Novembro de 1772, não pretendia o ensino para todos. Inclusivamente, no País da Revolução Burguesa de 89, os seus ideólogos, como La Chalotais, criticavam aqueles que, de aldeia em aldeia, promoviam a instrução pública e introduziam novos métodos pedagógicos, como os Irmãos das Escolas Cristãs. O próprio Voltaire, além de louvar La Chalotais, projectou a sua ironia sobre os Irmãos de La Salle porque promoviam o povo e o ajudavam a sair da sua marginalização social e cultural. Contrariamente, nos alvores das Luzes, Luís António Verney defende o ensino universal e, no apêndice à 16.ª carta, do Verdadeiro Método de Estudar (1746), elaborou um exame crítico da situação da mulher: «Certamente que a educação das mulheres neste reino é péssima; e os homens quase as consideram como animais de outra espécie» [4].
D. Frei Caetano Brandão conhece perfeitamente a realidade escolar em Portugal, nomeadamente a inexistência de uma rede escolar, o analfabetismo e a discriminação pela educação da mulher. Não há, para o magnânimo arcebispo, qualquer fundamento em considerar a mulher intelectualmente inferior e, desse modo, encontrar uma justificação para afastá-la do sistema escolar. Nem a diferença de sexo poderá legitimar uma desigualdade de oportunidades educativas. Reconhece, isso sim, inclinações e vocações diferenciadas. Para os homens, ofícios como: lavradores, mercadores, sombreireiros, tecelões, ferreiros, armeiros, livreiros, carpinteiros; para as mulheres: fiação, costura, tecelagem, bordado, sirgaria [5].
Retoma, frequentemente, a questão da educação feminina. Para tanto, avança com duas necessidades fundamentais.
A primeira (basta consultar a Pastoral para a Erecção do Seminário destinado à Educação de Meninas) relaciona-se com a formação de boas mães, porque estas, à excepção de um pequeno número de pais, são as únicas mestras de seus filhos na primeira idade [6].
Também Verney reconhecia esta necessidade e considerava as mães de família como as «nossas mestras nos primeiros anos da nossa vida» [7].
Mas o admirável discurso do venerando arcebispo termina com uma interrogação: se por infelicidade estas mestras não tiverem uma educação virtuosa, como a poderão dar a seus filhos? [8]. Assim, para a formação de boas mães, lançou-se na construção de colégios para: «educar Meninas pobres, e órfãs, ou ainda aquellas, que seus Pais quizerem, para sahirem dalli instruidas nas verdades da Religião, e em tudo o que póde servir de ornamento a huma boa Mãi de Familia» [9].
A segunda necessidade refere-se à formação de boas esposas: «Tomára que visse este rebanho de cordeirinhas arrancadas da boca do lobo (...). Ahi estão agora instruindo-se (...); depois casão com officiaes; contribue-se-lhes com alguma cousa para o seu estabelecimento, e fica uma familia talvez bem util á Religião, e á Sociedade» [10].
As medidas não se fizeram esperar. Tendo em conta a formação de boas esposas, para aquelas meninas e meninos que manifestavam vocação para o matrimónio, era obrigação do colégio promover encontros com «moças honradas e sisudas (preferidas sempre as meninas do Conservatorio de São Domingos) e soccorrel-os com a esmola necessaria para o seu primeiro estabelecimento» [11]. Estes subsídios, destinados ao estabelecimento do casal e actualmente designados subsídios de casamento, representam para a época uma ideia ousadamente inovadora, precursora e de grande alcance social para a época.
Para o excelso arcebispo, só a virtude e a ciência se devem impor à consideração dos povos: «invencivelmente me sinto arrebatado a promover a boa educação dos meninos e meninas pobres» [12]; mas, de entre estas, a sua preocupação fundamental era «educar as que tem de ser mãis de família» [13].
Por outro lado, a educação para Caetano Brandão tem um grande poder. O fomento da instrução é uma alavanca poderosa contra a ignorância, fonte de todos os males: «A educação é certamente uma das primeiras causas que influem no bem da sociedade» [14] e exerce ainda um grande poder de regeneração contra os inconvenientes do meio: «Corta-me o coração ver tantas meninas pobres sacrificadas à prostituição e à desgraça eterna por falta de ensino» [15].
As palavras verdadeiramente inovadoras de Cavaleiro Ferreira, Ribeiro Sanches, Luís A. Verney e Caetano Brandão representam um grande avanço em relação à obra de D. Francisco Manuel de Melo, Carta de Guia de Casados (1651). Nesta obra, a mulher passa da tutela dos pais para a tutela ainda mais cauta e suspicaz do marido; deve viver em reclusão completa, inclusivamente com a capela em casa; se possível, sem confidentes, sem criadagem da sua confiança pessoal; vigiada estreitamente nas suas relações e despesas; sem cultura literária e artística. Como ilustração, certo tipo de construções, dos séculos XVII e XVIII, são o melhor exemplo da religiosidade conservadora, que fazia cobrir as janelas com gelosias, adufas e finas grades de madeira, obrigando as mulheres a um recato absoluto. A Casa dos Crivos na velha Rua de S. Marcos é um exemplar chave desse tipo de habitações, de uma cidade beata, silenciosa e voltada para dentro de si mesma. Outro exemplo característico é a litografia a cores do artista Inglês G. Vivian, do Largo do Paço, datada de 1789, onde observámos estes motivos nas fachadas dos edifícios.
Mas as perspectivas abertas pelos inovadores, alguns deles estrangeirados, são, ainda, limitadas. Em nossa opinião, chama-se a atenção para a necessidade da mulher aprender, mas deverá fazê-lo muito mais pelos seus filhos, pela sua casa, pelo seu marido, que por si própria, pela sua efectiva emancipação.
[1] Escritora inglesa, nascida em 1759.
[2] Henriette Danet, Signé d'une Croix, Paris, Desclée, 1990. Augustin de Barruel enumera outros gestos de generosidade e testemunhos de caridade dos prelados da Península Ibérica que corresponderam ao apelo dos padres franceses, in História abbreviada da perseguição, assassinato e do desterro do clero francez, durante a revolução, Porto, 1797, parte III, pp.322-324.
[3] Coimbra, Imprensa da Universidade, 1922, pp. 190 e ss.
[4] Verdadeiro Método de Estudar, Ed. org. por A. Salgado Júnior, vol. 5, Lisboa, Sá da Costa Editora, 1952, pp. 148-149.
[5] Memórias,t.º II, pp. 120-129.
[6] Datada de 12/6/1788, Jornal de Coimbra, n.º 35, parte II, 1815, pp. 235-240.
[7] Carta 16, Apêndice, p. 125.
[8] Memórias, t.º 1, p. 281.
[9] Memórias, t.º I, p. 278.
[10] Memórias, t.º II, p. 232.
[11] Plano, p.15.
[12] Memórias, t.º II, p. 123.
[13] Memórias, t.º II, p. 128.
[14] Plano, p. 9.
[15] Memórias, t.º I, p. 278.
[2] Henriette Danet, Signé d'une Croix, Paris, Desclée, 1990. Augustin de Barruel enumera outros gestos de generosidade e testemunhos de caridade dos prelados da Península Ibérica que corresponderam ao apelo dos padres franceses, in História abbreviada da perseguição, assassinato e do desterro do clero francez, durante a revolução, Porto, 1797, parte III, pp.322-324.
[3] Coimbra, Imprensa da Universidade, 1922, pp. 190 e ss.
[4] Verdadeiro Método de Estudar, Ed. org. por A. Salgado Júnior, vol. 5, Lisboa, Sá da Costa Editora, 1952, pp. 148-149.
[5] Memórias,t.º II, pp. 120-129.
[6] Datada de 12/6/1788, Jornal de Coimbra, n.º 35, parte II, 1815, pp. 235-240.
[7] Carta 16, Apêndice, p. 125.
[8] Memórias, t.º 1, p. 281.
[9] Memórias, t.º I, p. 278.
[10] Memórias, t.º II, p. 232.
[11] Plano, p.15.
[12] Memórias, t.º II, p. 123.
[13] Memórias, t.º II, p. 128.
[14] Plano, p. 9.
[15] Memórias, t.º I, p. 278.